29/10/2015

abismo

Um certo dia, Lukács resolveu ironizar os filósofos da Escola de Frankfurt, em especial Adorno. Seu pretenso negativismo em relação ao curso do mundo, sua ânsia em descrever os impasses da razão sem aparentemente fornecer esquemas práticos de engajamento, exasperava Lukács ao ponto deste afirmar que os frankfurtianos viviam no Grand Hotel Abgrund [Grande Hotel Abismo]. Como quem fica na sacada dos últimos resquícios da civilização letrada observando impassivelmente a queda no abismo; Lukács, no entanto, não percebeu que ele acabara por fornecer involuntariamente uma definição dessa exigência fundamental da filosofia: a exigência de confrontar-se com o caos, confrontar-se com o que aparece a um certo conceito de razão como abgrund, e sentir-se bem. Pois este sentimento nasce da certeza de que não devemos ter medo de ir lá onde não encontramos mais as luzes projetadas por nossa própria imagem.
Wladimir Safatle.




Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

Wislawa Szymborska.

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