13/03/2016

de passagem #24

Só vemos o relâmpago dentro da tempestade do ser. Hoje em dia, porém, tudo indica que todo empenho busca afastar a tempestade. Usa-se de todos os meios possíveis para se atirar contra a tempestade, para que ela não os estorve a tranquilidade. Mas esta tranquilidade não é tranquilidade. É apenas insensibilidade, sobretudo a insensibilidade do medo de pensar.
Heidegger. Logos (Heráclito, fragmento 50).

31/01/2016

de passagem #23

O homem se comporta como se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que ela permanece sendo a senhora do homem. Talvez não seja o modo de o homem lidar com esse assenhoramento que impele o seu ser para a vida da estranheza. É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão. Dentre todos os apelos que nos fala e que nós homens podemos a partir de nós mesmos contribuir para se deixar dizer, a linguagem é o mais elevado e sempre o primeiro.
Heidegger. Habitar, Construir, Pensar.

17/01/2016

de passagem #22

O homem é o ser que falta a si mesmo e consiste unicamente neste faltar-se e na errância que isso abre.
Giorgio Agamben.

29/10/2015

abismo

Um certo dia, Lukács resolveu ironizar os filósofos da Escola de Frankfurt, em especial Adorno. Seu pretenso negativismo em relação ao curso do mundo, sua ânsia em descrever os impasses da razão sem aparentemente fornecer esquemas práticos de engajamento, exasperava Lukács ao ponto deste afirmar que os frankfurtianos viviam no Grand Hotel Abgrund [Grande Hotel Abismo]. Como quem fica na sacada dos últimos resquícios da civilização letrada observando impassivelmente a queda no abismo; Lukács, no entanto, não percebeu que ele acabara por fornecer involuntariamente uma definição dessa exigência fundamental da filosofia: a exigência de confrontar-se com o caos, confrontar-se com o que aparece a um certo conceito de razão como abgrund, e sentir-se bem. Pois este sentimento nasce da certeza de que não devemos ter medo de ir lá onde não encontramos mais as luzes projetadas por nossa própria imagem.
Wladimir Safatle.




Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

Wislawa Szymborska.

20/04/2015

de passagem #21

A produção [...] não se limita apenas a oferecer um objeto material à necessidade -- também oferece uma necessidade ao objeto material. Quando o consumo se liberta da sua grosseria primitiva e perde seu caráter imediato, o próprio consumo, como impulso, tem o objeto como mediador. A necessidade que experimenta desse objeto é criada pela percepção dele. [...] a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto.
Marx. Contribuição à crítica da economia política, p. 248.

17/03/2015

de passagem #20

Uma obra crítica ou filosófica que não se mantém de alguma maneira numa relação essencial com a criação, está condenada a girar no vazio, assim como uma obra de arte ou de poesia, que não contém em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento.
Agamben. Nudez, p. 15.

21/02/2015

de passagem #19

A arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro, mas torna-lhe clara a obscuridade.
Pessoa. Escritos sobre Génio e Loucura, T. I, p. 381.

07/02/2015

palavras fundamentais

As palavras fundamentais não exprimem algo que existiria fora delas, mas uma vez proferidas criam uma existência.
As palavras fundamentais são ditas com o próprio ser.
Quem diz uma palavra fundamental entra na palavra e nela persiste.
Martin Buber.

20/12/2014

artimanhas da ideologia

[...]  a maneira mais fácil de automaticamente marcar pontos em um debate é alegar que a posição do oponente não está propriamente "situada" em um contexto histórico: "Você fala sobre as mulheres - quais mulheres? Não existe a mulher enquanto tal, sua fala generalizada sobre as mulheres, em sua aparente neutralidade oniabrangente, não privilegia, então, certas figuras específicas da feminilidade e exclui outras?". Por que tal historicização radical é falsa, a despeito do óbvio momento de verdade que contém? Porque a própria realidade social contemporânea (o mercado global do capitalismo tardio) é dominada por aquilo que Marx se referiu como o poder de "abstração real": a circulação do Capital é a força de "desterritorialização" (para usar o termo de Deleuze) radical, que, em seu próprio funcionamento efetivo, ignora ativamente condições específicas, e não pode ser "enraizada" nelas. Não é mais, como na ideologia-padrão, a universalidade que encobre a torção de sua particularidade, de privilegiar um conteúdo particular; é, antes, a própria tentativa de localizar raízes particulares que encobrem ideologicamente a realidade social do reino da "abstração real".
Zizek. O amor impiedoso, p.10.

27/08/2014

sofrimento, poesia, alegria

Moacyr Félix
[...] para mim, o sofrimento é muito importante, o sofrimento existe como motivação na medida em que leva o homem a lutar consigo mesmo, ou seja, o homem é um ser que resulta da negação do não-ser na medida em que tem consciência daquilo que ele não é, ou não pode ser, ou do que pulsa dentro dele: a morte, o mistério, o acaso. Eu luto contra a dor para conquistar esse não-ser de que tenho consciência, ou seja, como diz Marx no quarto capítulo de O capital, somente o homem tem a consciência de que é necessário resgatar a humanidade de que o privaram. De repente ele se vê amputado do ser que ele devia ser e toma a consciência desse ser do qual foi exilado. Então ele passa a ser movido pela melancolia, a solidão, o desespero, o sofrimento. Toda a minha poesia é impulsionada por isso e, na medida em que sou impelido por isso, sonho com a utopia que o nosso Gullar chama de alegria, isto é, um sentimento de que seremos irmãos de nossos semelhantes e passaremos a viver em comunhão. Sendo assim, tomo-me cúmplice desse movimento que nos leva a fazer com que a alegria apareça dessa forma. 
Moacyr Félix, Poesia Sempre, ano 6, n. 9, 1998.