23/03/2012

notas sobre Benjamin #1

Ó anjo da alegria, já viste a desgraça,
os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
e o difuso terror dessas noites medonhas
que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Baudelaire. As Flores do Mal.


Benjamin e os frankfurtianos sempre estiveram atentos ao fragmento. Contar, refletir, interpretar por e através de fragmentos. O fragmento se inscreve no todo, não por dedução, nem por indução; ou seja, não para confirmar o mundo, tampouco para dar conta da sua totalidade, mas para "escovar a história a contrapelo". Adorno, influenciado por Benjamin, pensou nas "constelações": peças e elementos isolados, "figuras históricas", vestígios, sinais - não-intencionais - com os quais o filósofo/historiador "compõe", como o músico, o quadro textual - cujo significado não é nem será, em nenhuma hipótese, em-si. Interpretar e criar se fundem enquanto prática (teórica) crítica. 

Interpretar, neste sentido (Deutung) que chamarei "crítico", não se baseia na busca por um Sujeito que exista por detrás do texto, que escorra nas suas linhas, vírgulas e travessões, e que, como por mágica-hermenêutica, se funde com o texto/obra num em-si subjetivado. Trata-se, antes, de destruir a suposta unidade, cavar buracos no que se apresenta como homogêneo, idêntico e linear, esticar o tecido do real e revelar suas fissuras, fazer falar as vozes silenciadas, violentadas que foram. Afinal, "não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?".
O "difuso terror" de Baudelaire, que o peito oprime "como um papel que se amassa" se apresenta a Benjamin como crítica da modernidade não a partir da origem social da obra, mas como materialidade linguística, posto que "todo conhecimento tem sua única expressão na linguagem". O terror do poeta revela a "experiência" do sofrimento e da luta, do nadar-contra-a-corrente, da dimensão ética-estética do embate com o mundo que faz mercantilizar a existência, corroendo, petrificando e oxidando, de dentro para fora, a Humanidade prometida. "'Ó Anjo da Bondade, já vistes o rancor?".
O lugar da interpretação é "o espaço vazio nas obras em ruínas", como disse Adorno. A arte é a antítese do real, sem que se possa deduzir um do outro. Contra a ideologizante imagem do mundo estável, a arte é o facão que destroça o todo, e o próprio mundo destroçado.
O fragmento está no todo. E nisto consiste grave distinção da Teoria Crítica em relação à Tradicional - cartesiana. Mas a sua dissolução frente ao todo, seja este o progresso ou a estrutura - como fazem os agentes da "miséria da Razão" - destrói as dimensões conflitivas da vida e contestatórias da linguagem, reforçando a paralisia fatalista (ou o fatalismo paralítico). À Teoria Crítica interessa o que está-fora, o oculto, as potencialidades, adormecidas ou emergentes, que escapam à "escavação na superfície". Ora, o lugar da história "não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de 'agoras'".
Ou seja, a História não tem sentido, como sua verdade não se manifesta na intencionalidade; também não há nenhuma mensagem definitiva a transmitir. O que há são breves saltos e trechos de fôlegos, sonhos, soluços, terrores difusos. Caberá ao historiador/filósofo, ou, como preferiu Benjamin, ao materialista, negar o sentido primordial e encontrar nas lacunas, nos espaços vazios, esperanças e possibilidades de novas significações, ainda que sejam quase sem-esperança. 
Resgatando um romantismo desprestigiado pela tradição hegeliana, Benjamin entende a crítica da arte como, propriamente, um fazer arte. De modo análogo, para Adorno fazer filosofia é interpretar criticamente.
Esta interpretação crítica, que Adorno associou ao ato de criar, é dotada, assim, de uma dimensão artesanal: dá forma à matéria narrável, ligando secularmente a mão e a voz, o gesto e a palavra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

pode escrever, não se encabule.