[...] o curso do tempo não é mais que o tempo em sua indeterminação, ou em sua dinâmica indefinida. Sendo o tempo, para Heráclito, uma "criança que joga", o azar não pode ser outra coisa que a proveniência da ordem do mundo. Mas sendo o mundo, por sua vez, o destino que se joga a cada momento, o tempo não é outra coisa que o reino ou o âmbito de suas aparições.
A imagem de uma criança que joga não é nem uma imagem poética nem uma alegre metáfora. Trata-se de uma imagem conceitual que, à maneira da alétheia de Parmênides, transforma seu legado místico em uma instância de pensamento que desafia suas próprias possibilidades de conceituação. O tempo pensado como criança que joga é algo distinto de uma imagem poética, sem que se implica num identificação com um determinado conceito de temporalidade. Impera a imagem que provoca pensar o tempo, não como um "objeto" de reflexão, mas uma experiência da própria atividade de pensar, desligada (ou liberada) de toda sujeição, de toda "subjetividade". As "cronometrias" e "cronologias", como medidas concretas da temporalidade, e, além disso, o conceito aristotélico de tempo como medida do movimento, estaria subordinadas à forma de aión, que, sem desejar ser uma "medida", planta, em suas próprias condições, a eventual desmedida do que Ocorre, a imprevisível contingência do azar. Somente um kairosofia do bem pensar (sophrosyne) estaria em condições de con-jugar o jogo da criança com a pretensão, divinamente humana, do bem viver (eudaimonía). O único fragmento de Heráclito que nomeia, como tal, o azar, expõe que a mais detalhada ordenação que constitui o mundo é, per se, uma projeção azarada: um lançamento que, como o jogo de dados, coleta, ordena e seleciona a imprevisível contingência do que necessariamente ocorre. O "tempo" é o puro e simples acontecer que não está sujeito a nada que não seja o esquivo e inevitável do próprio movimento. Não se trata, pois, de pensar o tempo como se "o" tempo fosse algo para ser pensado. Pois, se pensar significa estar já em movimento - (con)mover-se -, trata-se de pôr em perspectiva o que ouvimos, a todo momento, como dizendo mesma recordação (logos). Pensar é voltar a si; mas voltar a si é, de fato, estar fora de si, nos limites da própria evanescência, sem outra morada que a inspiração transfigurada (a alma), a emanação metabólica (o mar), o ritmo incandescente (o fogo). O azar é essa dimensão caótica da ordem sem a qual é inconcebível a beleza lógica do mundo. A cosmologia corresponde, assim, ao metabolismo da physis: a pulsação do que está por vir entre o que sempre foi.
Francisco J. Ramos. Estética del pensamiento, 1998, p. 292-293.