03/04/2012

adorniando #2

O CÃO DE SPINOZA ¦ Por ser mediado por conceitos, o conhecimento se aproxima da realidade, como diz Gustavo Bernardo, “mas essa mesma realidade se abre e se afasta assim que tocamos na difusa ponta da sua sombra”. As palavras são sombras das coisas, contudo, nos lembra Stefan Zweig, “toda sombra é filha da luz”. “O conceito de cão não ladra”, provocou Spinoza, mas existe uma “coisa” sem a qual o conceito não haveria: uma coisa que late. Isto quer dizer que o conceito é duplo, e, mais, é dialético: aponta para dentro e para fora, a coisa que tenta representar, fazendo de si próprio alteridade, e, portanto, devir. Sustentar a dialética do conceito em devir significa, de início, levantar-se contra Hegel e a ideia de verdade como identidade entre coisa e conceito. Tão perigoso quanto associar a verdade ao fato é prendê-la na identidade com o conceito, pois, ao fazer isso, o pensamento destrói a si mesmo, ou seja, ao seu caráter essencialmente negativo, e, portanto, crítico. “Pensar é, antes de mais nada, negar”. Não obstante, as contradições da realidade não são solucionáveis através das categorias lógicas. Adorno não propõe uma filosofia sem conceito, o que é inviável, mas filosofia consciente do que é deixado de fora, do além-do-conceito; filosofia que “tira as vendas dos olhos”. O conceito permite pensar o objeto, mas não o esgota nem substitui.

EXPERIÊNCIA ¦ Tanto sujeito quanto objeto estão sempre mediados. Se o objeto deve ter preponderância – na medida em que priva o conceito de fechar-se sobre si e ser, assim, vazio –, deve ser mantido em relação de tensão com o sujeito. Trata-se de negar a reconciliação do objeto com o conceito, mas também com o sujeito. Contudo, este sujeito, que não se reconcilia e que, portanto, não se dilui no objeto, não será o “eu transcendental”, mas sujeito vivo, que, ao experienciar a realidade, se transforma qualitativamente. “O conceito chave do sujeito no conhecimento é experiência”. Não obstante, a experiência exige o encontro com a alteridade radical; ela só existe com o outro, o não-idêntico. Ou seja, o sujeito (vivo) que que se constitui na experiência, realiza, nela, a abertura do objeto mediado pelo conceito. No encontro com o outro, o sujeito se faz vivo, e o mundo, hipostasiado que estava aos olhos dos cadáveres, revelará suas fissuras; é por elas que transita o verdadeiro oxigênio da existência em devir.

DIALÉTICA DO SUJEITO ¦ O conceito de sujeito aponta tanto para o indivíduo particular quanto para a consciência em geral. Entretanto, ao insistir na transcendência do Ego, a filosofia elemina a individualidade, fazendo do ser existente (e consciente) um elemento lógico, numérico; “o cogito é o vazio”, como disse Olgária Matos. O Eu transcendental não realizará a premissa utópica de Bloch que consiste em tomar a existência em mãos. Por outro lado, a visão oblíqua do senso comum e do liberalismo, que pensa o sujeito como pura individualidade, elimina no seu interior o não-idêntico. Ora, tanto um quanto outro, se tomados isoladamente, impossibilitam a experiência. Trata-se, na constituição do sujeito, de fazer o mesmo confrontar-se com o outro; não para daí haver dedução (tampouco soma ou subtração): o que importa é o encontro. O “eu sou” que interessa não é nem o cartesiano nem o liberal, mas o de Bloch (“Eu sou, nós somos. Isto é tudo; vamos começar. Em nossas mãos está dada a vida”), que toma o processo em mãos ao se encontrar com o outro de fora e de dentro. Se não se pode falar de sujeito enquanto instância lógica sem individualidade, também a individualidade, tomada assim como um “universal”, se insere no transcendente - o que significa que, enquanto conceito, o sujeito é dialético. E, enquanto ser real e individual, só tem vida na medida em que movimento: que é em direção ao não-idêntico, e não a um suposto si-mesmo.

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